"uma criança abraçada a uma boneca é uma criança sem medo, uma criança feliz. Os meninos, proibidos de ter bonecas, se abraçam aos seus ursinhos de pelúcia. E nós, adultos, proibidos de ter bonecas e de ter ursinhos de pelúcia, nos abraçamos ao travesseiro... Os objetos são diferentes, mas o seu sentido é o mesmo: o desejo de aconchego e de ternura."

Filme: Nove Semanas e Meia de Amor
O Alienista
Tentações de Santo Antão, de Bosch
Grito, de Münch,

A nossa infelicidade se deve a isso, que não podemos comer com a boca tudo o que comemos com os olhos.

E aí eu pensei se não deverá ser muito maior que a Arca de Noé o saco dos nossos pobres adolescentes, arrastando o seu saber para fazer seus exames vestibulares. Se disserem que idéias não têm peso e nem ocupam espaço, direi que estão redondamente enganados. A mente tem sua própria geometria e sua própria física. E o problema é que eles deverão levar elefantes, dinastias de faraós egípcios, batalhas, bibliotecas inteiras, países e mares, pois nunca se sabe sobre o que versará a conversa do tal exame.
Pelo que Gulliver relata, o projeto foi abandonado por razões óbvias. O corpo não é trouxa de ficar arrastando um saco daquele tamanho. E é justamente isso que vai acontecer com os que passaram no vestibular: já que eles sabem que não mais terão necessidade de falar sobre aqueles assuntos todos, e nem haverá ocasiões para tal, eles irão progressivamente esvaziando o saco das inutilidades que ali foram colocadas, até chegarem à condição bem-aventurada de professores universitários, que só carregam nos seus sacos aquilo de que têm necessidade nos seus afazeres. Pois essa é uma lei de memória: aquilo que não é usado, é esquecido. O vestibular, assim, revela-se apenas um penoso, dolorido e obtuso exercício mental, cujos resultados estão condenados ao quase total esquecimento. Tenho feito e repetido um desafio, que ninguém se atreveu até hoje enfrentar: que os professores universitários, com seus mestrados e doutoramentos, se submetam aos ditos exames, do jeitinho como os adolescentes, para testar a sua performance. Minha aposta é que uma altíssima porcentagem seria reprovada, eu entre eles, o que não quer dizer que os professores sejam incompetentes: quer dizer apenas que o tal exame não faz sentido. Desafio os responsáveis pelos vestibulares a fazerem essa prova no ano que vem, só pelo humor dos resultados...

É isso que desejo para você e para mim, no início de cada ano: esquecimento. Tomar um banho. Deixar a água correr pelo corpo... Sentir os detritos do passado se despregando, e entrando pelo ralo. Recuperar o corpo sem memória da criança, para ver o mundo como se fosse a primeira vez...

Nós temos uma capacidade quase infinita de suportar a dor, desde que haja esperança.

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